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segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Valor de conhecimento X valor de treino


Discutiremos aqui a noção de exercício ou treinamento mental (mental training) já realçada no tempo de John Locke pelos adversários das artes liberais. Desde então, a oposição entre "valor de conhecimento" e "valor de treino" (Training value) foi muitas vezes estabelecida. A libertação do espírito significa que o que importa essencialmente não é a posse do conhecimento, mas apenas o desenvolvimento da energia, da habilidade e da exatidão das faculdades mentais do homem, sem que se leve em conta o que se aprende? Esta questão é de uma importância que nunca será demasiadamente valorizada, e a resposta errônea desempenhou provavelmente um papel considerável no enfraquecimento da educação contemporânea.

Como foi observado, de acordo com os dados da psicologia moderna, é muito duvidoso que o fato de exercer uma faculdade sobre um campo particular de ação, aperfeiçoe tal faculdade em relação a qualquer outro campo ao qual ela poderá ser aplicada. Herbert Spencer observava, há muito tempo, que, se ministrarmos a nossos alunos o conhecimento que é "do mais alto valor", como ele dizia, não é de se crer que a busca desse mais alto valor de conhecimento deixe de suscitar também a melhor disciplina mental. De um ponto de vista filosófico inteiramente diferente do de Spencer, julgamos entretanto que sua observação é preciosa. O conhecimento que é "do mais alto valor", - não nos referimos ao que é de maior valor prático, mas sim àquele que faz o espírito penetrar nas coisas que são mais ricas em verdade e em inteligibilidade - tal conhecimento produz, por si mesmo, o melhor exercício ou treinamento mental, pois é apreendendo o objeto e em se fazendo a si mesmo apreender e vivificar pela verdade, que o espírito alcança ao mesmo tempo sua energia e sua liberdade. Não é pela ginástica de suas faculdades, mas sim pela verdade, que ele é libertado, quando a verdade é realmente conhecida, isto é, vitalmente assimilada pela atividade insaciável enraizada em seu íntimo. A oposição entre valor de conhecimento e valor de treino provém da ignorância do que seja um acúmulo de materiais num saco e não ação vital por meio da qual as coisas são espiritualizadas a fim de se tornarem um com o espírito. 

No conhecimento que é "do mais alto valor", se se concedesse a preeminência ao exercício, ao treinamento mental, ou ao puro exame dialético de como foram feitas as grandes obras ou como procedem os grandes pensamentos, se fosse dado a um tal treinamento a preeminência sobre a beleza que gera o prazer, ou sobre a verdade a apreender e à qual aderir, proceder-se-ia às avessas da tendência natural e vital do espírito e resvalar-se-ia para o diletantismo, - e um diletante é antes um espírito fraco do que bem exercitado.

Há pessoas que pensam ser coisa admirável ter um espírito vivo, hábil, pronto a ver imediatamente os prós e os contras, ávido de discutir, e discutir qualquer assunto; acreditam que um tal espírito é aquele a que a educação universitária deve visar - sem se importar com o que se pensa, ou o que se discute, nem com a importância ou a futilidade da matéria em questão. Essas pessoas não percebem que, se tal concepção prevalecesse, não fariam senão transformar as universidades em escolas de sofística. Efetivamente, não formariam nem mesmo sofistas, que não deixam de ter certo valor, mas mentalidades falantes e desarmadas, que se acreditam bem informadas, mas vivem de palavras e opiniões. Tais homens receiam encarar a realidade, sobretudo quando é intelectualmente difícil e rigorosa, profunda ou dura. Substituem o esforço pessoal para apreender as coisas tais quais são em si, por uma incessante comparação de opiniões. A juventude cuja educação geral é assim concebida poderá fornecer excelentes especialistas no domínio da técnica ou das ciências da matéria, precisamente porque, nesse domínio, um tal tipo de educação não pode ser aplicado.

Quanto ao mais, no que se refere à compreensão do ser, do homem e da cultura, e aos problemas humanos mais elevado e urgentes, não apenas manifestam uma importante timidez nominalista, mas ficam inteiramente perdidos no meio de objetos de conhecimento e discussão cujo valor intrínseco e importância respectiva não podem e não querem discernir e reconhecer. Pois, se começamos por negar que um assunto qualquer, seja, em si mesmo e conforme a verdade das coisas, mais importante do que outro, então negaremos, na realidade, a importância de qualquer assunto, e tudo se desfaz em futilidade.

Supomos que a influência geral da filosofia instrumentalista contemporânea tem sua parte de responsabilidade na concepção pedagógica que ora criticamos, embora seja preferível buscar a causa principal no pretenso realismo do homem "prático" que menospreza as idéias e perguntas [d]o que é a verdade, com uma indiferença protetora e ignorando que despreza a origem mesma da ação, da eficiência e da praticidade humanas.

Num discuros pronunciado em 1940 na Universidade de Yale, o Presidente da Universidade de Chicago, Dr. Robert Hutchins, que propositadamente deu à sua voz um tom pouco afável para melhor persuadir seus amigos, afirmava que "o jovem americano de hoje não compreende senão por acidente a tradição intelectual a que pertence e na qual deve viver; pois seus fragmentos desunidos e dispersos estão espalhados de uma extremidade à outra do seu colégio. Nossos universitários possuem muito mais informações e muito menos compreensão do que na época colonial."

Não somos de modo algum indicados para emitir uma opinião sobre a exatidão ou inexatidão dessa afirmação do Dr. Hutchins, mas ele tem razão quando acrescenta: "O erro principal é afirmar que uma coisa não é mais importante do que outra, e que não pode haver hierarquia de bens, nem ordem no domínio da inteligência. Que não há nada central e nada periférico, nada primordial, nem secundário, nada fundamental, nem superficial." Estamos aqui em face de uma consequência do fato de ter a educação contemporânea dado muitas vezes mais importância ao valor do treino do que ao do conhecimento, em outras palavras, à ginástica mental do que à verdade, à ambição de se estar em boas condições do que à sabedoria.

MARITAIN, Jacques. Rumos da educação. Rio de Janeiro: Agir, 1968. pp. 91-96.

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